O DESAFIO DA INTEIREZA


A experiência de perda marca a nossa existência de várias formas. Perdemos o pai e a mãe. Perdemos os irmãos. Perdemos os concidadãos. Perdemos o tempo e a história. Nós nos perdemos! A pandemia da COVID19 foi uma experiência concreta de perda.

Neste contexto de perda, vem-nos à mente a pequena parábola contada por Jesus de Nazaré e que se encontra no Evangelho de Lucas, capítulo 15, versículos 8 a 9: “Qual a mulher que, tendo dez moedas de prata e perdendo uma, não acende a lâmpada, varre a casa e busca, cuidadosamente até encontrá-la. E quando a encontra reúne as amigas e vizinhas, e diz: “Alegraivos comigo! Encontrei a moeda que tinha perdido!” Essa parábola, em relação às outras parábolas também de perda – a da ovelha perdida e do filho pródigo, tem um sabor especial. Ela conta uma perda interior quase íntima: há uma parte do tesouro que se perde dentro da própria casa. Todos sabemos o que é isso! Não perdemos tudo, nem a maior parte sequer. De dez moedas, a mulher perdeu uma. Quase não se dá por nada. Mas quem vive essa perda, percebe o que isso representa: um arrefecimento, um abrandamento, uma quebra de inteireza de vida, na unidade ampla do “sim de amor” que nos constitui. Tendo perdido uma moeda, a vida continua, mas não da mesma maneira.

A maior parte das vezes, o nosso pecado não é apenas deixarmo-nos aprisionar a males concretos, mas é perdermos uma medida alta, exigente e vigilante, a medida profética e inteira do “Reino de Deus” em nós, o único “reino” que dá um sentido maior à nossa vida. E conformarmonos a isso, como se não fizesse realmente falta. Começam a espreitar-nos o cinismo e o desleixo em relação ao «primeiro e único amor maior». Apressadamente passamos à procura de umas moedas que não sabemos onde estão. Habituamo-nos, assim, há uma vida humana diminuída, amolecida, feita de meias tintas e de meias verdades, e falta-nos a ousadia das verdades inteiras. Desistimos de viver uma vida com inteireza. Desistimos do “Reino de Deus” presente em nós. Desistimos do sentido maior de nossa vida.

A mulher da parábola não culpou ninguém pela perda, não procurou bodes expiatórios, não ficou de mau humor, nem deprimida…, mas também não se deixou ficar de braços cruzados. E nós? Se calhar, ainda nos restam nove, ou sete, ou cinco, ou três moedas… E podemos tentar consolar e enganar-nos com elas, fingindo que não damos pela falta de uma outra vida, de um novo frescor, de um coração inteiro. O primeiro momento de reconciliação é a decisão interior que nos leve a retomar, precisamente, a arte da busca pela inteireza. «Para ser grande, sê inteiro», dizia Fernando Pessoa. De fato, o grande desafio da vida humana não é, claro, o de grandeza, mas o da inteireza. Sermos nós mesmos – “imagens e semelhanças de Deus”! A própria parábola da mulher que perdeu uma moeda de prata, nos oferece a “pedagogia da reconciliação com a inteireza”: É preciso “acender a lâmpada”, “varrer a casa”, “buscar cuidadosamente” e, assim, envolver os próximos no “alegrar-se comigo”.

Dom Jacinto Bergmann, Arcebispo Metropolitano da Igreja Católica de Pelotas, Brasil. Representante de las Conferencias Episcopales de América Latina y El Caribe en el Comité Ejecutivo de la Federación Bíblica Católica (FEBIC)


Deja un comentario

Este sitio utiliza Akismet para reducir el spam. Conoce cómo se procesan los datos de tus comentarios.